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sobre monstros, mulheres e mulheres monstruosas
Frankenstein, Florence e reflexões sobre o feminino, o grotesco e o peso das expectativas
Frankenstein é um dos meus livros prediletos. Eu falo isso sempre, incessantemente, até o ponto de me sentir repetitiva, aquela pessoa de um repertório só. Portanto, assim que soube do filme, fiquei super empolgada para assisti-lo. O fato que ele lançou no dia do meu aniversário (7 de novembro), foi considerado um presente do universo depois do terceiro ano seguido com a data sendo marcada por irritações. Uma colher de chá para adoçar o amargo dos meus 31 anos.
Pois bem, assisti o filme de Guilhermo Del Toro segunda-feira (10) e me vi encantada outra vez pela narrativa. A Criatura e o diálogo central da história, todos os paralelos com o ato da Criação. Assim mesmo, em maiúsculo. Criação como gesto divino. Como Victor é, sempre foi, um homem fascinado pelo poder de Deus, por romper a última barreira da vida e isso não muda no filme, apesar de ali ele estar mais velho. A Criatura é sensível, doce, violenta. Os adjetivos não se excluem. Há quem diga que o filme cai numa posição de Victor = mau, Criatura = bom, mas eu discordo. Ao menos, em parte. Mas esse não é o ponto desse texto (quem sabe de um futuro).
Aqui, pretendo falar sobre outra crítica, ou melhor, sobre uma indagação. Já na segunda-feira, me deparei com vídeos e postagens questionando a premissa do tropo “a Bela e a Fera”, como tem sido chamado, presente na interação da Elizabeth, que no filme também referencia a Noiva do Frankenstein, com a Criatura. Para além do debate se o relacionamento é amoroso, maternal ou de duas almas que se encontram (e acho que a resposta pode ser sim para todos os três) o questionamento de “mas cadê a história de mulheres monstruosas?” me deixa ligeiramente irritada. Ou talvez irritada não seja a palavra, ressabiada seria melhor.
Não que ache inválido. Não é. De fato, as narrativas tendem a colocar personagens masculinos terríveis como complexos e personagens femininas complexas como terríveis. É parte da cultura da “mulher perfeita”. Da vítima perfeita (aliás, outro debate que vi foi acreditar que a Criatura do Frankenstein não é vítima pois, veja só, durante tanto o livro quanto o filme ele mata gente… de novo, outras conversas).
Voltando ao assunto de mulheres monstruosas, tenho indagações.
O que é monstruoso? Ou melhor, quem é monstruoso?
Para não entrar em um debate sobre o que é o belo e, portanto, o que é o feio. Ao falar do que causa repulsa no corpo feminino, minha única resposta é: tudo. O corpo designado feminino é, para a sociedade, repulsivo por si só. Meninas crescem aprendendo a se depilar, a se maquiar, a não falar sobre menstruação, a tolher a própria natureza e a se encaixar na artificialidade exigida pelo mundo. Quantas vezes a gente não vê pessoas, homens principalmente, chamando desconhecidas na internet de nojentas por causa de pelos?
Às mulheres, não dado o luxo da falha inerente à humanidade. Uma mulher monstruosa, poderia muito bem ser apenas uma mulher real que não atende às expectativas desse feminino construído por séculos como ferramenta de controle (e aí Beauvoir é certeira em dizer que não se nasce mulher, torna-se).
As implicações do fisicamente monstruoso para o universo feminino são diferentes. Não que não haja outras implicações no geral para esse arquétipo, muitas vezes derivado de capacitismo, racismo, gordofobia etc, porém adicione a pressão estética e os padrões de beleza inalcançáveis e voilá. Eis uma receita pronta para o desastre. (PS: não estou falando que não se pode escrever algo assim, ou que não existem livros assim, apenas que é preciso pesquisa, escuta e muita intencionalidade no que se quer trabalhar).
além do mais, o público em geral não sabe lidar com mulheres imperfeitas
Eu não tenho dados, mas tenho convicção. Como uma pessoa que já foi cronicamente online e acompanhou vários lançamentos de histórias com mulheres imperfeitas, há sempre uma constante na recepção das personagens femininas em relação aos personagens masculinos. Usando um outro Frankenstein de exemplo, dessa vez, a minha versão predileta do Victor Frankenstein: a de Penny Dreadful.
Também em razão do filme, vi reacender um interesse nessa série que eu acompanhei e amo de paixão e nessas indas e vindas das redes sociais, uma das postagens sobre ela me causou incômodo. Era uma crítica, que tinha até pontos válidos, mas que dizia que Penny Dreadful caracterizava suas personagens femininas em arquétipos de vítimas x vilãs. Por si só, já acho debatível, mas fica da interpretação de cada um. O problema dessa postagem foi as personagens escolhidas para exemplificar isso. A pessoa em questão colocou a Vanessa Ives, protagonista interpretada pela Eva Green, e para vilã a Lily Frankenstein/Brona Croft, interpretada por Billie Piper.
E eu nunca vi alguém tá tão equivocado no take. A Lily em Penny Dreadful cumpre a função da “noiva” da criatura. Tentarei não dar spoilers sobre a história dela, mas quando ela é reerguida como morta-viva, ela já perdeu a agência sobre o próprio corpo e a própria vida vezes demais. Então, imortal, ela toma a decisão de combater ativamente (da forma que ela sabe) essa estrutura que a criou. Diferente do John Clare (A Criatura da série), Lily não tem cicatrizes. Ela é, em aparência, uma mulher comum. Até que ela inflama, ela busca lutar contra os sistemas que a colocaram naquele lugar monstruoso e é um desserviço taxar ela de vilã. Da mesma forma, colocar Vanessa Ives como vítima tão e somente tira dela o poder de agência que Ives tem durante boa parte da história.

Eva Green como Vanessa Ives

Billie Piper como Lily Frankenstein
Mas se as pessoas não sabem lidar com a Lily, como podem lidar com mulheres repugnantes? Se uma mulher complexa é colocada como vilã no primeiro gesto que rompe as expectativas, como transformá-la em interesse amoroso de alguém?
Uma fúria que ecoa em Everybody Scream.
O novo álbum da Florence me fez pensar sobre a relação entre expectativas sobre mulheres. One of the Greats entrou quase imediatamente para a playlist da minha nova história, a forma visceral que Florence canta sobre ser enterrada, trazida de volta à vida, e então rechaçada por não corresponder às expectativas. Do you regret bringing me back to life? (Você se arrepende de me trazer de volta à vida?) Casa tanto com a minha mais nova vampira, quanto com a Criatura do filme de Del Toro. Mas talvez nessa música também esteja a outra justificativa para raramente existirem relacionamentos duáricos entre uma monstra e um homem: It's funny how men don't find power very sexy. (É engraçado como os homens não acham o poder algo muito sexy)
Talvez aí esteja a chave. Para um homem se interessar por uma mulher monstruosa, é preciso que ele, também, não siga os padrões esperados do comportamento masculino, a tal masculinidade tóxica e frágil. Para que ele se atraia por aquela criatura é preciso que não tema ser o elo frágil da relação. Que tenha sido criado para amar e não ser amado e esses pontos são raros na vida real. E a ficção, mesmo aquela escrita em universos completamente inventados, não se distancia do mundo onde é produzida.
Recentemente, percebi que escrevo histórias de mulheres mais poderosas que seus interesses amorosos. Não é um pensamento novo, recebi essa crítica quando lancei A Guardiã (meu primeiro livro, de 2016) de dois leitores, ambos homens, que se incomodaram com Delilah e Alva sendo magas mais fortes que seus pares românticos. Da mesma forma, em Da tua Rosa, todos os meus casais duáricos seguem o padrão humano x criatura imortal. Não foi acidente. Eu gosto de inverter tropos que cresci assistindo e à essa altura é quase inconsciente. Em Caçadores de Tempestade, onde há um trisal com duas garotas e um rapaz, o sequestrado é o Nico e tanto Nadira quanto Tifa são mais fortes que ele. Em A Última Canção de Mariposa, a parte da fantasia está nas mãos de mulheres também — ainda que não haja romance.
Meus dois projetos vampirescos (o que está em busca de uma casa editorial e o que estou escrevendo agora) contém vampiras com homens mais humanos que elas (quer dizer, mais ou menos no caso de ODN). Então, talvez a pergunta também me deixe amarga por um ponto de vista pessoal. Eu sei que não sou pioneira, que existem histórias assim, na produção desse texto uma amiga bem me lembrou de Shrek 2, onde Fiona ser a ogra é abordado. O problema não é que as histórias não existam, é quando elas vão ganhar espaço, carinho e, principalmente, atenção.
Então, é importante perguntar sobre histórias que invertem a ideia por detrás de “A Bela e a Fera”, como também entender de onde isso surgiu (sugiro o vídeo da Thais Lopes que, apesar de curto, é bem explicado) mas também é preciso se perguntar: estou de fato querendo livros assim ou essa é só uma provocação? Ou ainda uma forma de atacar um gênero que tem surgido e intrigado muitas leitoras? De qualquer forma, é de provocações desse tipo que eu, e várias outras escritoras, também encontramos material para escrever.
Recomendações:
Da vítima ao monstro, de Carol Façanha. A tese de doutorado da Carol é fascinante em se tratando de abortar o tema e está disponível online aqui.
E, obviamente, o Frankenstein de Del Toro, que está impecável e o novo álbum de Florence + The Machine, Everybody Scream.
Me sigam também no instagram @vampifada pois reerguer as próprias redes sociais é um caos. Até o próximo texto!

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