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[carta 010] sobre desigualdade regional, eventos literários e consciência
às vezes, compete a quem não sabe sobre o assunto calar a boquinha (esse é um texto raivoso)
[soprando a poeira acumulada nessa pilha de cartas da newsletter]
Olá, alguém por aí? Espero que essa nova carta te encontre lutando contra o capitalismo e a escala 6x1, mas enquanto isso, vamos conversar.
Essa semana, tenho visto o tema da desigualdade regional ressurgir. Puxado, principalmente, pelo posicionamento da maravilhosa Fernanda Castro em não ir para o Jabuti, mesmo que ela possa ter condições financeiras para tal. Como a própria disse, a ausência comunica. E essa ausência vem com um questionamento é de fácil compreensão: até que ponto os eventos ditos como nacionais podem continuar acontecendo em apenas uma (no máximo duas) regiões?
Vivemos em um país continental e, às vezes, dizer isso não surte efeito. Palavras não conseguem dimensionar as horas gastas entre dois pontos. As pessoas precisam sentir a distância na pele para entendê-la e, mesmo assim, há quem olhe para o mapa do país e não note que há muito mais que uma linha reta para ir do ponto A ao ponto B.
Mas, quando falamos de eventos literários, a distância não é o único empecilho.
Lá em 2020/2021 eu fiz um fio no finado Twitter levantando quantas autorias por região tinham em algumas agências brasileiras. Pouco depois, a Maddu Teixeira fez o mesmo com algumas editoras e, para a surpresa de ninguém, a gente vê que os espaços são ocupados por autores, em maioria, sudestinos, em especial do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Por isso também não surpreende que os eventos se concentrem na região. Negar isso é negar o contexto histórico de uma formação nacional que concentrou e concentra verbas e incentivos para o sul do país (leia-se Sul aqui como tudo abaixo da Bahia).
A gente pode até mesmo listar esses eventos (coisa que não farei por falta de tempo, deixo a ideia para quem a quiser) e comparar os incentivos, investimentos e patrocinadores. Quando se falar de Evento Literário, no que você pensa? Bienal Internacional do Livro? São Paulo ou Rio de Janeiro. FLIP? Paraty, no estado do Rio de Janeiro. FLIPOP? São Paulo, capital. Eixo Rio-São Paulo, alguns podem argumentar e, sim, não nego que a concentração é ainda mais específica relacionada a esses dois estados, mas em termos de deslocamento, quem vai ter que gastar mais (tempo e dinheiro) para participar de um evento desses?
E a Dona Maria do interior de Minas Gerais, vai pegar dois ônibus pra ir no mesmo evento, não sofre mais?
Primeiro que cansada das Marias hipotéticas, dessa MEI de periferia, que tá sempre por fora dos debates ou que não sabem o que é a escala 6x1 essa semana. Depois: ignorar que outras regiões também são plurais, também possuem interiores, parecem mais um sintoma da síndrome “e eu?” que assola a internet do que uma crítica bem intencionada. Não é por dizer que se deslocar do Nordeste (usando de exemplo onde moro) para o Sudeste é difícil que estou dizendo que o deslocamento dentro do Sudeste é fácil. Mas esse comparativo desleal também encontra outros contrapontos lógicos. Uma viagem João Pessoa – Rio de Janeiro, duas capitais, de ônibus, leva dois dias e custa no mínimo R$ 520,00 (procurei no Clickbus, mas achei resultados custando também R$ 1.200,00). Uma viagem de Governador Valadares (MG) ao mesmo Rio de Janeiro leva 11 horas e custa cerca de R$ 220,00 (pelo mesmo site). Isso é só um exemplo. Se a gente quer realmente tecer esse comparativo, fazer essa “escala quem sofre mais” (que é ridícula, a propósito) é preciso dados reais, não achismos tirados do próprio rabo para se colocar na posição de Grande Vítima™ do mundo.
Lutar contra desigualdades também passa por entender o que é, o que não é e quais são os seus privilégios.
Falei um pouco sobre isso no Céu Azul. Ir para uma Bienal, para mim, é sempre muito caro. Em 2022 fui para Bienal do RJ e estimo que gastei cerca de 2 mil reais só com passagem e deslocamento, ganhei a hospedagem, mas se a considerasse teria sido mais de 3 mil. Não estou sequer considerando alimentação, material para levar (não pude levar) e outros aspectos. Ou seja, para me fazer presente em um evento no Sudeste, preciso desembolsar ao menos dois salários mínimos. Dinheiro esse que não retorna pro meu bolso.
Claro, estar em eventos não é obrigatório, mas quando a gente não vai, a sensação de estar perdendo espaço é dolorosa. Sempre ecoa na máxima de “quem não é visto não é lembrado”. O esquecimento em um mercado que nos engole, sucateia e cospe diariamente é um risco que nem sempre podemos correr.
Fora isso, também há outros questionamentos: Quantas vezes as autorias do Sudeste vêm para a Bienal de Pernambuco, por exemplo? Quantas vezes essas mesmas autorias divulgam, com igual afinco, eventos no Norte e Centro-Oeste do Brasil? E para além de quem escreve, quantos estandes de editoras vemos nesses eventos fora do Sudeste? Quantas marcas patrocinam esses eventos? Quanto é dado de incentivo para esses locais fora do eixo?
Não fingirei ter respostas, tampouco direi que sei o caminho. Porém, quando vejo sudestinos se fazendo de desentendidos à crítica, ou agindo como se a desigualdade regional fosse um invencionismo, ou o pior, se incomodando mais com o termo sudestino que com o problema em questão.
Se você foi uma dessas pessoas, coloque um pouco a mão na consciência. Ninguém está dizendo que por ser mais difícil para quem é de fora, é fácil para quem é da região. Há outros recortes (classe, raça, identidade de gênero) mas esses recortes tampouco são exclusivos do Sudeste e é muito sacana esquecer isso apenas quando convém.
P.S.: esse texto foi escrito entre uma raiva e outra, os dados mencionados são do dia 13 de novembro de 2024.
P.S. 2: Refiz o instagram, me sigam lá também: @vampifada
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