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[carta 008] sobre a raiva de tudo
Eu tenho raiva do mundo. É um sentimento quase perpétuo, meio à lá o Bruce Banner em algum dos filmes dos Vingadores, sabe? Esse é o meu segredo, capitão, eu estou sempre com raiva. É difícil não se enfurecer com os absurdos cotidianos, ligar a TV e ter ou uma meia-dúzia de jornalistas classe-média-alta falando bobajadas liberais, ou então defendendo (nas entrelinhas) a violência policial, ou até justificando genocídio com suas camisas bem passadas e seus ares de especialista.
Raiva é o ponto de partida do dia. Ela existe, sobretudo, nos entremeios, nos suspiros resignados de quem já não sabe mais o que fazer.
A internet tampouco é melhor. É, de muitos modos, mais devastador. Palestina, Brumadinho, Marielle. As manchetes se confundem na medida em que tudo é um flash, um clique e, oh, mais outro absurdo acontecendo em algum lugar do mundo. Mais algum escroto se dando bem.
Aqui na capital da Paraíba estão construindo na praia, passando dos limites que faz a orla da minha cidade ser tão bonita. Nada acontece. As obras continuam, ainda que embargadas. Nada nunca acontece com quem tem dinheiro e, consequentemente, poder. Ter raiva é natural, é a resposta ao que nunca nos perguntam.
Mr. Nancy, o Anansi de Neil Gaiman em American Gods, tem uma fala sobre a raiva. Anger gets shit done. Em bom português: a raiva resolve essas merdas. Eu não sei se concordo. Minha fúria é paralisante, o tipo que me ensandece porque eu deveria fazer algo, eu quero fazer algo, eu olho pro mundo e penso no que os manifestantes costumam gritar: quem não pode com formiga, não mexe com formigueiro. E num mundo de Musks e Bezzos, não somos formiguinhas mesmo? Milhões de formigueiros espalhados tentando não sufocar com a fumaça inevitável das máquinas.
Você sabia que o mundo pode ter o seu primeiro trilionário em 10 anos? São mais zeros do que jamais veremos, juntos, na vida. A fome, entretanto, continua e deve continuar pelas próximas centenas de anos.
Mas eu não me sinto uma formiga. Eu sou cigarra. Aparente vagabunda tentando fazer arte. Escrita é meu canto. É o que eu sinto que sei fazer de melhor. Me pergunto se as cigarras têm função além do canto e o Google me diz apenas que são alimento para predadores.
É. Isso também dá raiva.
Eu quero fazer algo com a raiva, mas no fim tremo quieta, água em ebulição. Frivilhando, como diria minha avó. Sempre fervilhando.
O problema é: esse estado de perpétua ebulição é exaustivo. Quando penso em deixar essa raiva no papel, travo. Já não é a página em branco que me intimida, é o volume subindo, é o transbordar, ao mesmo tempo que quero que a minha escrita seja válvula pra tudo isso (seja lá o que isso for) eu temo o espaço entre as letras e a mente de quem lê. Eu temo a minha raiva, preciso de tempo com ela, entendê-la, torná-la algo vagamente compreensível. Pior, preciso fazê-la palatável.
Quando comecei esse texto, pensava em falar desses primeiros 24 dias de 2024, o completo caos que se tornou minha vida em 2023 e as expectativas do novo ano. Estou tentando reaprender a ser sonhadora, o que é irônico considerando que escrevo e, pior ainda, que escrevo fantasia. Tenho pensado muito no que escrevo e no que não sou capaz de escrever. Foi então que me deparei com o texto da Ana Carolina Dantas no Verifique Antes de Ler.
“...quando eu escrevo sobre pessoas fictícias passando fome fictícia, é porque eu não consigo escrever sobre pessoas reais passando fome real e escrever um livro sobre isso.”
Vi em algum curso, ou algum vídeo, ou algum blog, sobre escrever sobre o que te causa medo. Eu preciso de tempo com meus medos, com minhas sombras. Eu gosto de rir com meus demônios, de tomar uma taça de vinho com eles e atiçá-los o suficiente pra saber que ser uma boa pessoa é uma eterna e árdua tarefa que nem sempre parece compensar, ao menos, não nessa lógica capitalista. Meus medos parecem terrivelmente mundanos ao mesmo tempo que são buracos negros esperando engolir naves espaciais.
Escapista, não é? Mas não somos todos em diferentes níveis?
Eu tenho raiva do mundo. Às vezes, da própria vida. O que eu fazer? O que eu faço? Atualmente, ando me sentando com ela, conversando com seus rios de lava e suas fontes termais, tentando moldá-la em algo que faça sentido pra mim, em algum vilão que não pode ser redimido. Quem sabe no próximo livro ela não esteja ali, à espreita, escondida bem na frente de todos…
No fim, talvez Anasi tenha razão, raiva faz mesmo alguma coisa acontecer. Ela me fez escrever esse texto, não é?
Livro e músicas do mês
Sobre a terra somos belos por um instante
Terminei de ler Sobre a terra somos belos por um instante, de Ocean Vuong e já tem o potencial de ser uma das minhas leituras prediletas do ano. O autor tem uma escrita poética deliciosa e visceral e o livro, especialmente seu final, me fez chorar horrores. É uma leitura que recomendo, especialmente para quem quer ler algo queer e mais maduro, permeado com debates sobre o que é ser um homem vietnamita e gay nos EUA.
Stick Season (We’re All Be Here Forever)
Eu tenho escutado esse álbum tantas vezes nos últimos seis meses que deveria ser preocupante. Já gostava do trabalho do Noah em Busyhead (de 2018) e confesso que demorei a escutar Stick Season no medo que não fosse gostar tanto. Porém, a medida que compreendia as letras e os temas, ficava cada vez mais encantada por ele. A faixa título, No Complaints, You’re Gonna Go Far, The View Between Villages e Dial Drunk (esta última bem estourada no TikTok) são algumas das minhas músicas favoritas.
Avisinho de além das brumas: Para quem me segue em redes sociais, sim, eu estou off. Ando sem cabeça para internet no geral, como mencionei brevemente, 2023 foi um ano conturbado. Minha mãe foi diagnosticada com câncer, houve perda salarial aqui em casa, mudança de rumo na carreira, muita confusão e, por fim, meu computador foi de arrasta pra cima depois de muito avisar seu final. Ando focando em conseguir algo mais estável que a escrita e repensando muita coisa. Essa newsletter, por exemplo, foi algo que cogitei abandonar, mas gosto desse esquema informal de tagarelar e esperar respostas que podem ou não aparecer. Aparecerei quando der, mas não faço promessas.
Espero não ter assustado ninguém reaparecendo assim. Um xêro! Até mais.
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