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[carta 007] um livro extraordinário
uma resenha de é assim que se perde a guerra do tempo
Não costumo fazer resenha de um livro lido, acho que a internet me traumatizou num ponto que tenho medo de falar do que gosto — e ainda mais do que não gosto. Fazer o quê? Eu sou meio sensível demais para algumas coisas e ter que justificar meus gostos é uma delas. Mas esse livro, esse livro, merece cada linha que eu possa escrever sobre ele.
Já vou adiantar minha opinião: É assim que se perde a guerra do tempo é uma obra de arte.
Uma das metáforas que mais gosto sobre o ato de escrever é o de catar feijão, presente no poema de João Cabral de Melo Neto:
“Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.”
Não tenho como falar de É assim que se perde a guerra do tempo sem pensar nessa metáfora. Pois se escrever é encontrar as palavras certas em meio a tantas outras e, nesse livro, cada linha, cada palavra, cada espaço está ali com propósito. Veja bem, o livro é curto (em torno de 180 páginas) e a história é complexa. Nesse sentido, ele me lembra um pouco A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin, que é outro favorito da minha vida. A diferença é que se me pedem pra explicar a trama do livro de Le Guin, eu não sei falar muito bem, mas o livro de Amal El-Mohtar e Max Gladstone eu posso definir tranquilamente.
É assim que se perde a guerra do tempo é uma história de amor, ou melhor, ele é uma carta de amor. Epistolar, não-linear, por vezes confuso entre os tantos filamentos que se apresentam, esse livro parece uma ode ao próprio ato de escrever. A poesia em cada linha, as reflexões, a ida e volta do relacionamento de Blue e Red, a tensão que vai aumentando e aumentando e aumentando até chegar em seu ápice.
“Quando Red vence, ela está sozinha.”
Mas esse livro não é só sobre amor, também é sobre guerra. Ou melhor, sobre a natureza da guerra longe dos superiores que a arquitetam. Em nenhum momento ficou claro qual o motivo por detrás da guerra, apenas que ela está sendo guerreada, que há duas facções indo e voltando em feixes temporais, viajando entre infinitas possibilidades e as alterando de acordo com o desejo de suas facções — Agência e Jardim.
“Engraçado como nós sempre pensamos em cavaleiros lutando contra dragões, quando na verdade eles trabalham para os dragões.”
À medida que o livro vai passando, você começa a sentir como aquela guerra é vazia, ou talvez se torne cada vez mais vazia para as protagonistas e isso passe para os capítulos. Existe um certo nível de resignação de Red e Blue em como as coisas são, mas um desejo secreto por outras possibilidades que é sutil e proibido, como o romance entre as duas.
“Eu gosto de escrever para você. Eu gosto de ler você.”
Aliás, sobre desejos e sensualidade. É pela poesia da narrativa que existe um lado sublime e quase erótico da relação, eu gosto de ler você, a discussão sobre fome, comida, deleites mundanos que encontram nas cartas um jeito de ecoar os sentimentos. O desafio que se torna proibido, a amizade que se torna amor. O fervor em cada correspondência. Eu poderia passar horas hiperanalisando esse livro até destrinchar cada pedacinho, mas terminaria apenas dando gritinhos de satisfação.
“Amor é o que temos, contra o tempo e a morte, contra todos os poderes dispostos a nos aniquilar.”
E o final para mim é a síntese perfeita de toda a jornada dessas duas personagens. É um final aberto (artifício que já vi muita gente xingar na internet) mas que aqui encontra um exemplo perfeito: não é sobre o que acontece no fim da jornada das personagens, é sobre a jornada em si.
Definitivamente, a melhor leitura do ano (e olha que li muita coisa maravilhosa esse ano).
É isto. Espero que tenham gostado.
PS: se alguém por aí gostar desse estilo de narrativa epistolar e não-linear e quiser ler uma fantasia nacional com essa pegada, eu escrevi um livro assim em 2017/2018. Não estou dizendo que é comparável com um vencedor do Hugo, Nebula e Locus, é óbvio, mas é uma fantasia medieval sobre uma fada que perde as asas e a história é um compilado de várias cartas de personagens distintos, a principal é a Rosa — uma fada cujas asas foram arrancadas.
PPS: essa newsletter eu ia falar sobre Noah Kahan e fins de jornadas, porém esse assunto fica pra próxima (juro que vai ter uma depois do próximo capítulo de Orquídea da Noite)
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