[carta 006] a cozinha e a escrita

ou sobre aprender a me dar uma colher de chá em áreas criativas

Começa assim: na sala, minha mãe assiste algum programa de Rita Lobo. Ela é praticamente uma fã, há livros dela por aqui, títulos ensinando o básico até para quem não sabe pegar numa colher, são esses livros o motivo de eu normalmente levar tantos puxões de orelha. Veja, para mainha, cozinhar é uma questão de liberdade, de escolha, e o fato de que eu não gosto soa como um sacrilégio. Só que para mim, a cozinha é um território hostil.

É nesse conflito de visões que a gente termina se engalfinhando. Em minha defesa, não é como se eu fosse uma completa inapta na cozinha (faço o básico, sei me virar, e faço um crepe como ninguém, se me é permitido o momento de falta de humildade) mas para ela não é o suficiente. Eu não sei cozinhar o que eu não gosto, tampouco tenho interesse de aprender; nunca acerto o ponto do arroz, não nego a dificuldade com carnes e prefiro ir testando os temperos com moderação. Para ela, que faz parmegianas dignas de restaurantes, pizzas, pães, pratos de camarão com dendê, deve ser absurdo que a filha não seja boa com algo que lhe é natural.

Mas eu nunca fui ensinada a gostar da cozinha. Ao contrário, todas as vezes que tentava fazer algo era lembrada que estava desperdiçando ingredientes, que eu não sabia e assim fui simplesmente deixando para lá. A mim ficava a louça, afinal aqui temos uma regra de que quem cozinha não lava os pratos, e organizar a mesa e guardar os restos. Por anos e anos foi assim, minha mãe monopolizava o uso da cozinha, uma rainha em seu reino, e eu mantinha distância, sempre temendo ocupar espaço demais, seguindo todas as instruções que ela deixava à risca quando não podia esquentar o almoço.

Nos últimos dias, conversando com meu noivo, me dei conta do motivo de não gostar da cozinha, é o mesmo motivo pelo qual travei com tantas áreas criativas: eu tenho pavor do erro. Penso imediatamente no custo das coisas e quanto dinheiro é tempo da sua vida e quanto que estou desperdiçando… enfim, não é saudável. Em outras áreas, consigo driblar esse medo, mas cozinhar? Rá! Essa ainda é uma das áreas que me causam desconforto.

E não é assim que a gente fica quando escreve também?

Há estágios da escrita nos quais estou com tanto medo de tomar uma determinada decisão com os personagens que passo dias contemplando. Com as redes sociais, esses momentos se multiplicam. Eu sei que no momento em que eu publicar algo aquela história deixa de estar nas minhas mãos, deixa de estar segura nos meus braços pra ganhar asas em outros lugares. As interpretações são tantas quanto os paladares. Escrever é meio como cozinhar, há receitas antigas, dessas passadas em cadernos de vó, segredos nem tão secretos, toques de carinho em pontos inesperados e há também aquele tempero que só você acerta a mão, o algo a mais que torna um prato realmente único.

Escrever também é como liberdade.

Volto à Rita Lobo e sua briga com os ultraprocessados, a insistência para que as pessoas comam melhor e também a ignorância. Às vezes, ela ignora que para cozinhar é preciso tempo. Tempo este que na rotina às vezes nos escapa. Quantas vezes eu queria escrever, mas estava tão exausta que não conseguia pensar em uma única linha? Quantas vezes preferi ler uma fanfic que era mais uma repetição de outras vinte apenas por não estar com a cabeça boa o suficiente para me aventurar em algo mais denso? Pode parecer estranho traçar paralelos entre coisas tão distintas, tentar entender os privilégios por detrás de ter tempo para ambas as atividades. Cozinhar requer tempo, requer prática. Particularmente, desconfio de qualquer pessoa que diga que nunca queimou nada, que nunca perdeu a mão no sal, ou simplesmente esqueceu de colocar um ingrediente.

Quem tenta algo, erra. O erro é natural.

Às vezes, parece que a gente esquece isso quando se trata da escrita. A maioria das amizades que tenho no meio estão quase sempre presas em ciclos de autossabotagem, e me incluo nessa. São pessoas com estilos diferentes, abordagens diferentes, enredos diversos, mas que ainda são pegas pela ideia de se esse próximo livro não for o melhor da minha carreira, não serve para nada. Estamos constantemente competindo com algo que não existe, uma espécie de prato perfeito servido sob medida e que irá agradar todo mundo que nos lê.

Não somos perfeitos, tudo o que podemos fazer é nos permitir errar. Nos permitir testar outras coisas. E, com o tempo, talvez sejamos capaz de encontrar uma "especialidade da casa", um prato principal. Ou talvez a gente termine apenas colecionando várias receitas diferentes, abrindo a geladeira no final do mês e improvisando com as sobras vez por outra. Faz parte.

Eu espero que a gente que escreve se permita tentar (assim como também estou tentando, aos poucos, resolver meus traumas de cozinhar).

Essa newsletter foi só uma reflexãozinha que estava na minha cabeça, mas espero que tenham gostado. Como estão? Espero que todo mundo bem. Esse aqui é um lembrete que estou publicando Orquídea da Noite no Tapas também e muito ajuda se você puder se inscrever lá! (Mas só se quiser)

Lembrando que sexta-feira tem atualização. É isto. Um cheiro no coração <3

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