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[carta 004] uma confissão, queerbaiting e bissexual chic

em algum lugar, esse texto era apenas um desabafo que tomou forma de muitos questionamentos

Esse texto é uma confissão. Assim como um texto que fiz no medium um tempo atrás falando sobre minha jornada com a demissexualidade, o propósito aqui não é bater o martelo em nada, apenas falar sobre incômodos recorrentes que não cabem em tweets e botar certos dissabores pra fora. Então lá vai, me aguentem por um segundo.

Primeiramente, a confissão: por causa de algumas experiências, eu evitei me dizer bi, honestamente, ainda não me sinto 100% segura. É curioso que pouco depois de me descobri demissexual, mandei mensagem para uma pessoa que se dizia minha amiga que talvez também estivesse questionando, que achava na real que já tinha me apaixonado pela minha antiga melhor amiga (lembro de sonhar beijá-la lá pelos 12/13 anos) mas que ser ace talvez tivesse interferido em me entender melhor.

A resposta dela foi desinteressada. Aquele "tá bom" corta-assunto que fez não só esse tópico morrer como levou vários outros juntos. Tempos depois a vi falando de queerbaiting de artistas e como tinha gente que se diz bi, mas tá em "relacionamento hetero" e que nunca é visto com pessoas do mesmo gênero, então é claramente alguém querendo chamar atenção.

Infelizmente, essa não foi a última vez que li isso. Em todas elas, essas palavras viraram pra dentro. Eu também me atraio por mulheres ou isso é apenas fruto de estar inserida em meio progressista? Eu sou mesmo bi? Eu posso me dizer bi?

Enquanto ser demissexual me ajudou a dizer: é isso que eu sou, me dizer bi (sexual ou romântica) sempre ficou em uma área confusa de "eu nunca tive um relacionamento sáfico, nunca fiquei com uma mulher, claramente eu só quero ser especial e chamar atenção". Até que...

chamar a atenção de quem, exatamente?

Entendam, eu não tô falando que não existem pessoas mal intencionadas usando do movimento queer como um acessório de moda (chegarei nesse ponto em breve), mas eu quero que você que tá lendo esse texto pense um pouquinho a respeito disso. A quem serve esse interesse de guardar os portões do Vale™ como uma espécie Cerberus com chifres de unicórnio e bandeirinha arco-íris?

Se gênero e sexualidade são múltiplos, é de se esperar que suas expressões também sejam múltiplas. É curioso que a mesma pessoa que compartilhe "não é sobre ação, é sobre atração" esteja no dia seguinte criticando um artista por nunca ter saído com alguém do mesmo gênero, mesmo se dizendo bi/pan.

Isso não quer dizer, é claro, que artistas com falas péssimas e prejudiciais a comunidade não possam ser corrigides, nem sequer devam ser cobrades. Mas talvez a questão seja quem faz ser da comunidade LGBTQIA+ um escudo, quem disfarça os rancores pessoais como uma espécie de "eu posso falar sobre pois eu também sou" e a verdade é que a coisa não vai por esse caminho.

Ninguém é perfeito e ninguém está isento de falar uma besteira, de reproduzir preconceitos que estão tão enraizados na sociedade que sequer os vemos debaixo de tanta terra. Algo sobre raízes podres é que é apenas uma questão de tempo para elas se tornarem adubo.

entre o bissexual chic e carteiradas

O termo bissexual chic chegou até mim com um vídeo recomendado, do canal verilybitchie. Em inglês, elu discute sobre como nos anos 2000 ser bi virou uma espécie de moda, uma performance que visava pessoas hetero, uma piscadela para a transgressão. Também fala do papel do emo nisso tudo, como parte da resistência ao emo veio da lgbtfobia, levando a atentados no México e em outros países. Não vou alongar muito sobre, recomendo ver o vídeo.

Atualmente, alguns cantores e artistas no geral tem usado de referência uma era que foi definida pelo bissexual chic, os anos 1970 com Bowie e o visual andrógino, o glamour rock no geral com homens de salto e perucas. Se isso é bom ou não, não dá pra dizer ainda, mas artistas deveriam ser livres para experimentar em suas várias formas de expressão.

O problema é que se um cara hetero começa a experimentar batom e pintar as unhas e usar saias, por exemplo, isso toma dois lados:

  1. portais de fofoca noticiando como se isso fosse a coisa mais revolucionária que já existiu na face da terra, como se não tivéssemos vários nomes que vieram antes fazendo isso. Boy George, Elton John, Billy Porter, só pra citar alguns. Todos queer, inclusive.

  2. pessoas dizendo que aquilo é ridículo, que um homem hetero está fazendo queerbaiting pois percebeu que pessoas queer são um mercado com vasto poder aquisitivo.

  3. tem também a terceira via (risos): uma parcela menor (muito menor) apontando inconsistências em ambos os discursos supracitados.

Sobre o 1, o problema é o apagamento, é portais que alimentam a síndrome de Pedro Álvares Cabral que permeia nosso meio, onde as pessoas esquecem que ele não descobriu nada, apenas invadiu o que já existia. Sobre o 2 a questão é a proximidade desse discurso com o conservadorismo, a expectativa de uma masculinidade e heterossexualidade também performática que impede a expressão.

Entretanto, pra mim, o problema do segundo também é que, às vezes, ele é direcionado a pessoas bi, a quem ainda não se definiu e quem está se descobrindo. Um caso particular me chamou a atenção durante as últimas semanas que é o caso do ator Kit Connor (de Heartstopper). Ele é um garoto que interpreta um personagem bi e na última semana desativou o twitter por causa de ataques vindos de pessoas LGBT+ fãs da série que estavam com raiva por ele ter sido fotografado de mãos dadas com uma garota...

Falei que o personagem dele é bi? Pois é.

Kit diz que prefere não se rotular e isso, para mim, não é um problema. Ele é um garoto de dezoito anos, eu só fui me descobrir ace aos vinte, sabe? A gente passa por muitos processos de autodescoberta e mudanças na vida, aos 27 eu sinto que ainda estou tateando ao redor de possibilidades, mudando um pouco a cada dia, esperando melhorar.

Fora isso: o personagem dele é bi.

Cobrar que uma pessoa bissexual se relacione com alguém do mesmo gênero apenas para satisfazer a sua necessidade de representação é uma pressão que fere todo mundo envolvido. Ninguém, repito, NINGUÉM deveria ser obrigade a provar nada em relação a própria sexualidade.

"Ah, mas elu se diz bi e só se relacionou com outros gêneros que não o seu". NÃO IMPORTA.

Como uma pessoa ace, pra mim isso é particularmente violento pois como provar a ausência de algo? Não é como se atração sexual fosse um pote que eu pudesse abrir e mostrar: tá vendo? É vazio! Ou um cofre que exige uma chave específica para abrir (cuja senha até eu desconheço) e eu exibisse isso.

Quando a gente acusa uma pessoa real de fazer queerbaiting, o que estamos fazendo é dizer que aquela pessoa não cumpre a nossa expectativa de como uma sexualidade deveria ser vivida. Quando se é bi, fica aquela dúvida pairando no ar, mesmo que você assuma, diga com todas as letras, sua palavra nunca será o suficiente.

Eu sou uma mulher, sou bi, meu relacionamento vai completar 12 anos em breve e é com um cara. Eu nunca namorei outra pessoa na vida e, assim como não deixo de ser ace por estar em um relacionamento, eu não deixo de ser bi pelo meu relacionamento ser lido como hetero. Ou melhor, um relacionamento duárico, palavra que mesmo entre as pessoas queer que falam sáfico e aquileano parece ter sido esquecida.

...isso não quer dizer que queerbaiting não exista

É claro que existe. Queerbaiting entretanto é quando um produto de mídia (livro, série, filme etc) quer agregar um público LGBTQIA+ sem, entretanto, perder o público conservador. É com isso em mente que eu queria que quem chegou até aqui pensasse a respeito de em qual universo ser e se assumir bissexual manteria esse público conservador?

A pergunta é retórica.

Eu sei que no meio disso tudo há uma culpa do capitalismo nisso tudo, como pessoas viram uma espécie de produto ao venderem a própria vida em redes sociais, mas isso é assunto que cabe outra newsletter inteira sobre.

concluindo...

Nesse dia da visibilidade bissexual, essa newsletter foi feita de um lugar de muitos questionamentos e inquietudes, nasceu de um pouco de rancor com quem se acha São Pedro do Vale LGBT+, com chaves na mão e o julgamento nos olhos, e doses de feridas que aos poucos a gente aprende a curar. Eu não sou a dona da razão (estou longe disso), sou apenas uma pessoa cansada.

Por fim, deixo só um pedido encarecido aqui: não forcem pessoas a saírem do armário, não tornem esse processo mais doloroso e/ou confuso que já é, cada um tem seu tempo, sua jornada e peculiaridades que não sabemos.

(E assistam Heartstopper, ou leiam)

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